Embora te digam o contrário, o passado é aquilo que se move à tua frente, enquanto o futuro te persegue, silencioso, lá atrás.
sexta-feira, julho 25, 2008
terça-feira, julho 22, 2008
History repeating
Não, a história não se repete, é apenas um pouco chata. Durante alguns anos tive uma vizinha que se repetia muito e sei que a história não é assim. A história pode doer quando volta mas não entra pela casa, às tantas da noite, para recontar as agruras dos filhos, soltando o verbo sempre pelos mesmos caminhos. Terá os seus defeitos, a história - a minha, a tua, a tua - mas não esse. Terá, por certo, uma sombra qualquer, aquele desastre na pele, uma verruga, um derrame às portas do coração, uma perna quebrada mas já não como dantes; e nem parecidos, agora que reparas. É outra sombra, outro desastre, outra verruga, outro derrame, é outra a perna quebrada. Se, por exemplo, eu encontrasse na rua a minha ex-vizinha, de um lado, e a história, do outro, saberia bem de qual delas me esquivar. A minha ex-vizinha repete as histórias mas a história (claro que pode doer quando volta) não repetirá, se deus quiser, a minha ex-vizinha (talvez a tua, a tua). No entanto, à cautela, estarei atento aos avanços nas técnicas de clonagem e ao congresso de Vilar de Perdizes.
domingo, julho 20, 2008
D'oh
Não sei se este calor também vos aperta e se, como eu, já se enterneceram com o pássaro Lorenz, mas não vão daqui embora sem saber que, até à data, temos isto: Odisseia 0 - Simpsons 3. Ah, os clássicos!
Porém, e para resgatar a credibilidade quase residual deste blog, fica aqui um pedaço de prosa que, bem vistas as coisas, é mais uma visita aos mecanismos da memória do que um namoro às letras:
«[...] Embora impossível de trocar por um almoço, esse Virgílio fora consolo em horas de fome. Estendido e com o cinto apertado, tinha-o estudado no chão de um antigo calabouço, tinha procurado passagens favoritas e concluído que os livros mais recentes eram menos belos por não terem recebido a consagração da memória; ou, numa pausa das suas andanças pela ilha, sentava-se na berma da estrada a mirar para lá do oceano as montanhas do Eimeo, e mergulhava na Eneida para encontrar "presságios". E mesmo que o oráculo respondesse com vozes ambíguas ou pouco animadoras (como é vulgar nos oráculos), pelo menos enchia-lhe a memória do exílio com visões de Inglaterra: salas de aula buliçosas, campos de jogos verdejantes, férias em casa, o imparável rumor de Londres e a lareira, a cabeça branca do seu pai. Porque o destino dos graves, repressivos e clássicos autores que a escola impinge e tantas vezes dá a conhecer de forma dolorosa, é conseguirem passar ao nosso sangue e serem na memória recordações natais, ao ponto de Virgílio não falar tanto de Mântua ou Augusto como de lugares ingleses e da irrecuperável mocidade do que foi estudante.»
R.L. Stevenson, «No vazio da onda, trio e quarteto», traduzido por Aníbal Fernandes
Porém, e para resgatar a credibilidade quase residual deste blog, fica aqui um pedaço de prosa que, bem vistas as coisas, é mais uma visita aos mecanismos da memória do que um namoro às letras:
«[...] Embora impossível de trocar por um almoço, esse Virgílio fora consolo em horas de fome. Estendido e com o cinto apertado, tinha-o estudado no chão de um antigo calabouço, tinha procurado passagens favoritas e concluído que os livros mais recentes eram menos belos por não terem recebido a consagração da memória; ou, numa pausa das suas andanças pela ilha, sentava-se na berma da estrada a mirar para lá do oceano as montanhas do Eimeo, e mergulhava na Eneida para encontrar "presságios". E mesmo que o oráculo respondesse com vozes ambíguas ou pouco animadoras (como é vulgar nos oráculos), pelo menos enchia-lhe a memória do exílio com visões de Inglaterra: salas de aula buliçosas, campos de jogos verdejantes, férias em casa, o imparável rumor de Londres e a lareira, a cabeça branca do seu pai. Porque o destino dos graves, repressivos e clássicos autores que a escola impinge e tantas vezes dá a conhecer de forma dolorosa, é conseguirem passar ao nosso sangue e serem na memória recordações natais, ao ponto de Virgílio não falar tanto de Mântua ou Augusto como de lugares ingleses e da irrecuperável mocidade do que foi estudante.»
R.L. Stevenson, «No vazio da onda, trio e quarteto», traduzido por Aníbal Fernandes
sexta-feira, julho 18, 2008
domingo, julho 13, 2008
quinta-feira, julho 10, 2008
Um conto, mil escudos
Os ingleses é que têm culpa. Eu teria preferido chegar mais cedo mas começando a procurar por Chekhov, na letra ‘C’, ainda se demora algum tempo a alcançar a prateleira onde repousam os volumes de contos de Tchékhov, vertidos para português por Nina e Filipe Guerra, que isto das traduções também pode funcionar bem num T1 para dois. Neste caso, vale a pena percorrer quase um alfabeto inteiro (começar em «Anton» será talvez excessivo) porque o resultado é magnífico, ainda melhor do que o Holanda 1 : Rússia 3 (Pavlyuchenko 56’, Torbinskiy 112’ e Arshavin 116’); isto para verem o tamanho e o sucesso da empreitada.
Os livros trazem dezenas de contos e, sublinhe-se em câmara lenta, não é fácil escrever contos pois estes não são, como muitos julgam ou desejam, apenas romances de pernas curtas nem sinopses enfeitadas. Meia dúzia de páginas é, contudo, espaço suficiente para se dizer muitas coisas e, nas mãos de grandes autores, o tamanho perfeito para não ser preciso dizer muitas coisas. Os melhores só na aparência revelam despojamento pois o que fica de fora também pesa e é essencial para que possamos acreditar nas personagens com as quais vamos conviver escassos minutos, sem tempo para nos afeiçoarmos aos hábitos delas nem nos irritarmos com os seus catálogos de defeitos. Ninguém confia em tagarelas. No conto «Inimigos», Abóguin procura convencer um médico, a quem lhe morreu um filho, a vir em socorro da sua mulher gravemente doente. Para conseguir fazê-lo, Abóguin utiliza um tom de voz suave e terno que reforça a sinceridade do pedido pois, explica Tchékhov: «uma frase, por mais bela e profunda que seja, apenas surte efeito nos indiferentes, e nem sempre satisfaz quem esteja feliz ou infeliz; por isso, a máxima expressão da felicidade ou da infelicidade é, na maioria das vezes, o silêncio; os namorados compreendem-se melhor um ao outro quando estão calados; um discurso fúnebre temperamental só comove os estranhos e parece frio e mesquinho à viúva e aos filhos do defunto.». Sem grandes malabarismos, este apontamento pode igualmente servir, no essencial, para pôr em relevo a força invisível dos contos de Tchéckhov, uma vez que é a sinceridade do tom que comanda a escrita e não a frase engalanada ou as fracturas expostas.
Sobretudo nos contos mais pequenos, é com frequência necessário, num rápido traço, descrever as personagens e, ao mesmo tempo, deixar avançar a narrativa. Um truque óbvio resulta, naturalmente, de fazer adivinhar o carácter, as idiossincrasias de cada Mikháilovna ou Ivánovitch apresentado ao leitor, através de fragmentos de acção: um jeito de franzir o nariz, o modo de sorrir, o movimento do pescoço durante a dança. No entanto, muitas vezes, Tchéchov usa a estratégia inversa que é a de construir o lado mais físico das personagens a partir de elementos interiores. Um dos meus exemplos preferidos, desta espécie de triplo mortal à retaguarda, surge no conto «Uma desgraça», a história de um cavalheiro e suas tentativas para conquistar o coração de uma mulher, enfrentando da parte dela uma resistência inicial que o angustia; uma história com mais versões do que as bebedeiras da Amy Winehouse nas ruelas de Camden e tão velha que já não deve morrer. A certa altura do conto, tinha a mulher bonita e jovem acabado de falar (isto é importante), escreve Tchékhov a propósito de Ivan, o homem que a observa: «a expressão do seu rosto era de raiva, caprichosa e distraída, a expressão de um homem que sofre e que é, ao mesmo tempo, obrigado a ouvir disparates» (ou conheces a cara ou conheces o sentimento).
Antes de tudo isto está, ainda, o prefácio-rebuçado de Nabokov onde ele, com acerto, nos tenta convencer que «Tchékhov escrevia livros tristes para pessoas alegres». Ora esta pequena frase resume com muito mais brilhantismo aquilo que o meu longo texto só esforçadamente consegue aflorar. Numa frase, num só golpe, Nabokov arruma comigo. Isto é, nem mais nem menos, o que um bom conto deve fazer aos seus leitores e vizinhos. Com um só golpe de cada vez, Tchékhov dá muita porrada. E, na letra ‘C’, o Chekhov se aparecer também apanha.
Os livros trazem dezenas de contos e, sublinhe-se em câmara lenta, não é fácil escrever contos pois estes não são, como muitos julgam ou desejam, apenas romances de pernas curtas nem sinopses enfeitadas. Meia dúzia de páginas é, contudo, espaço suficiente para se dizer muitas coisas e, nas mãos de grandes autores, o tamanho perfeito para não ser preciso dizer muitas coisas. Os melhores só na aparência revelam despojamento pois o que fica de fora também pesa e é essencial para que possamos acreditar nas personagens com as quais vamos conviver escassos minutos, sem tempo para nos afeiçoarmos aos hábitos delas nem nos irritarmos com os seus catálogos de defeitos. Ninguém confia em tagarelas. No conto «Inimigos», Abóguin procura convencer um médico, a quem lhe morreu um filho, a vir em socorro da sua mulher gravemente doente. Para conseguir fazê-lo, Abóguin utiliza um tom de voz suave e terno que reforça a sinceridade do pedido pois, explica Tchékhov: «uma frase, por mais bela e profunda que seja, apenas surte efeito nos indiferentes, e nem sempre satisfaz quem esteja feliz ou infeliz; por isso, a máxima expressão da felicidade ou da infelicidade é, na maioria das vezes, o silêncio; os namorados compreendem-se melhor um ao outro quando estão calados; um discurso fúnebre temperamental só comove os estranhos e parece frio e mesquinho à viúva e aos filhos do defunto.». Sem grandes malabarismos, este apontamento pode igualmente servir, no essencial, para pôr em relevo a força invisível dos contos de Tchéckhov, uma vez que é a sinceridade do tom que comanda a escrita e não a frase engalanada ou as fracturas expostas.
Sobretudo nos contos mais pequenos, é com frequência necessário, num rápido traço, descrever as personagens e, ao mesmo tempo, deixar avançar a narrativa. Um truque óbvio resulta, naturalmente, de fazer adivinhar o carácter, as idiossincrasias de cada Mikháilovna ou Ivánovitch apresentado ao leitor, através de fragmentos de acção: um jeito de franzir o nariz, o modo de sorrir, o movimento do pescoço durante a dança. No entanto, muitas vezes, Tchéchov usa a estratégia inversa que é a de construir o lado mais físico das personagens a partir de elementos interiores. Um dos meus exemplos preferidos, desta espécie de triplo mortal à retaguarda, surge no conto «Uma desgraça», a história de um cavalheiro e suas tentativas para conquistar o coração de uma mulher, enfrentando da parte dela uma resistência inicial que o angustia; uma história com mais versões do que as bebedeiras da Amy Winehouse nas ruelas de Camden e tão velha que já não deve morrer. A certa altura do conto, tinha a mulher bonita e jovem acabado de falar (isto é importante), escreve Tchékhov a propósito de Ivan, o homem que a observa: «a expressão do seu rosto era de raiva, caprichosa e distraída, a expressão de um homem que sofre e que é, ao mesmo tempo, obrigado a ouvir disparates» (ou conheces a cara ou conheces o sentimento).
Antes de tudo isto está, ainda, o prefácio-rebuçado de Nabokov onde ele, com acerto, nos tenta convencer que «Tchékhov escrevia livros tristes para pessoas alegres». Ora esta pequena frase resume com muito mais brilhantismo aquilo que o meu longo texto só esforçadamente consegue aflorar. Numa frase, num só golpe, Nabokov arruma comigo. Isto é, nem mais nem menos, o que um bom conto deve fazer aos seus leitores e vizinhos. Com um só golpe de cada vez, Tchékhov dá muita porrada. E, na letra ‘C’, o Chekhov se aparecer também apanha.